Ana Rita Oliveira, enfermeira em Inglaterra vê-se agora na linha da frente da pandemia da Covid-19. Embora o seu hospital ainda não tenha chegado ao colapso, Ana Rita confessa que a vida e as rotinas mudaram. E já passou por momentos menos bons que jamais esquecerá. Mesmo assim, escolhe sorrir e enfrentar este desafio com pensamento positivo.
Nome: Ana Rita Oliveira
Origem: Figueira da Foz
Residência: Nottingham
Profissão: Enfermeira, nos Cuidados Intensivos
O que é que mudou na sua vida com a Covid-19?
O aparecimento desta pandemia não mudou muito o meu dia a dia. Continuo a ir trabalhar como fazia, mas infelizmente, deixei de puder conviver com os amigos ou ir ao ginásio. Como não tenho a minha família em Inglaterra comigo, continuo a comunicar com eles através do Facebook, como já fazia. Creio que em termos profissionais, o sentimento de ansiedade aumentou bastante, pelo menos nos primeiros dias. Com isto quero dizer que, antes, trabalhar parecia algo completamente normal. Mas com o surgimento desta doença, sinto-me mais ansiosa, sempre com receio de fazer algum erro. De ficar exposta ao vírus e consequentemente, em risco de o transmitir a outros. Além disso, no início sentia-me assustada com a possibilidade de ficar gravemente doente e não ter a minha família por perto para me apoiar.
Como é a sua rotina profissional hoje em dia?
Como trabalho numa unidade de cuidados intensivos, onde a maioria dos doentes têm Covid-19, existem várias coisas que mudaram. Por exemplo, antes ía fardada para o hospital. Hoje já não o posso fazer, para reduzir o risco de contágio. Depois, uma vez que vou cuidar de doentes infetados, tenho que me equipar antes de entrar na área contaminada.
O processo passa por: calçar luvas, vestir um avental de plástico com mangas, calçar um segundo par de luvas. Por cima das mangas do avental, colocar uma touca e uma máscara. De preferência FFP3, caso já tenha feito os testes para definir a máscara certa para mim e por fim, colocar uma viseira.
Assim que estou pronta, um colega tem que verificar se estou, bem equipada. Só então, entro na área contaminada.
Ana Rita Oliveira
Depois disto, dirijo-me ao meu doente ou doentes para esse dia e recebo o turno do enfermeiro anterior.
Uma vez passado o turno, as minhas rotinas no local de trabalho continuam as mesmas. Quando termino e antes de sair para área limpa, tenho que tirar o meu avental e o par de luvas exterior. Tenho de desinfetar as luvas interiores com gel desinfetante. Depois, já na área limpa e em local próprio, tiro a viseira e lavo-a com água e sabão. Desinfeto novamente as luvas interiores com gel, tiro a máscara e a touca. Por fim, lavo bastante bem as minhas mãos com água e sabão, antes de puder tirar a minha farda. Se possível, tento tomar banho no hospital, para tentar ao máximo reduzir o risco de contaminação.
Como está o ambiente no hospital onde trabalha?
Aqui no Queens Medical Centre a situação está relativamente calma. Não somos dos hospitais mais afetados em Inglaterra. Como tal, ainda temos pessoal médico e recursos suficientes para prestar os devidos cuidados aos doentes.
No início, sentia-se alguma ansiedade e apreensão entre todos e também, alguma desorganização. As nossas rotinas profissionais estavam, de certa forma, alteradas.
Ana Rita Oliveira
Mas de momento, como esta situação já está mais presente no nosso dia a dia, sinto que já estamos todos a ir “com o flow” e mais relaxados com tudo. Ao mesmo tempo, mais bem preparados para o que puder acontecer.
De uma forma geral como é estar na linha da frente de uma pandemia?
Para mim, não muda muita coisa. Apesar de todas as restrições impostas para ficar em casa, eu tenho que continuar a desempenhar a minha profissão. Tal como fazia antes da pandemia. Além disso, como toda a situação já está mais presente no meu dia a dia, tudo parece mais normal. Por outro lado, em Nottingham a situação está ainda relativamente calma. Há camas, ventiladores, diversos equipamentos e pessoal médico disponível. Por isso, a pressão causada pela pandemia ainda não se sente tanto aqui.
Que situações já viveu e mais a marcaram nesta fase?
O que mais me marcou nesta fase foi a morte do meu primeiro doente com Covid-19. Estive dois dias seguidos com ele e foi chocante a forma como, de um dia para o outro, ele se deteriorou. A ponto de já não ser possível fazer nada. No momento em que os médicos decidiram chamar a família, o meu pensamento imediato foi de que, de alguma forma, não tínhamos feito o suficiente por aquela pessoa.
Mas não somos invencíveis ou deuses para podermos reverter o irreversível.
Ana Rita Oliveira
Por isso tentei pensar que tinha dado o meu melhor e tinha feito tudo para salvar aquela pessoa. A equipa que estava a trabalhar comigo, quer médicos quer enfermeiros, também foi espetacular em assegurar-me que tinha, de facto, dado o meu melhor. Creio que isso foi muito importante para me fazer sentir melhor.
Mas, não deixou de ser difícil comunicar à família do doente que não havia mais nada que pudéssemos fazer. Que ele iria morrer nos próximos minutos.
Ana Rita Oliveira
Lembro me que os filhos já não o viam há mais de 2 semanas, uma vez que ele tinha estado em isolamento e naquele momento, estavam a minutos de o ver morrer. Não conseguia sequer imaginar o que eles poderiam estar a sentir. Nesse momento, sei que só queria sair dali e chorar sozinha. Ligar aos meus pais para saber se eles estavam bem. Tentei manter as minhas emoções e dar o meu melhor para apoiar aquela família. No fundo, era tudo o que podia fazer.
Tem medo de ir trabalhar?
No início desta situação, confesso que tinha bastante receio de ir trabalhar. Ainda hoje sinto uma certa ansiedade. Nunca sei que doente ou doentes terei para o dia e como estará a condição deles.
Além disso, estamos a trabalhar com muitos enfermeiros do bloco operatório. Estamos a treiná-los para serem capazes de prestar cuidados a doentes em condições críticas. Para que no futuro, caso seja necessário, eles nos possam servir de apoio no combate a esta pandemia.
Ainda que seja um bom plano de preparação, não deixa de ser mais uma responsabilidade para os enfermeiros de cuidados intensivos. O nosso período de integração quando começamos numa unidade de CI é de seis semanas. Para os enfermeiros do bloco operatório não está a ser mais do que um dia ou dois (antes de ficarem sozinhos com um doente), nos quais são completamente bombardeados com informação.
Como era a sua vida antes da Covid-19?
Pelo facto de morar sozinha em Inglaterra, sempre trabalhei bastante e fiz vários turnos extra. Nos meus tempos livres, aproveitava para ir ao ginásio, fazer compras e arrumar a casa. Mas de uma maneira geral, passava muito do meu tempo a trabalhar. Costumava passar algum tempo com os meus amigos fora do trabalho. Especialmente com a minha amiga e vizinha, uma vez que frequentamos as duas o mesmo ginásio. Mas de momento, como não podemos estar juntas, tentamos apostar nas videochamadas. Recentemente, começámos a fazer caminhadas, sempre mantendo o devido distanciamento. Confesso que isso melhorou a forma de lidar com a pandemia.
Que circunstâncias a fizeram emigrar para Inglaterra?
Emigrei para Inglaterra porque quando terminei o curso, em 2013, não haviam perspetivas de trabalho na minha área em Portugal.
Durante cerca de 2 meses, enviei o meu currículo para propostas de trabalho de norte a sul do pais. Até para Madeira e Açores.
Ana Rita Oliveira
No entanto, praticamente todas exigiam experiência profissional e como recém-licenciada, não a tinha. Entreguei currículos de porta a porta em tudo o que era lares, centros de análises clínicas e unidades de saúde na Figueira da Foz, em Coimbra, Aveiro e Leiria. Tenho a certeza que a maioria dos currículos foi das minhas mãos para a gaveta ou para o lixo. Como tal, ao fim desses 2 meses, achei que era altura de tentar outros países.
Candidatei-me para a primeira proposta de trabalho em Inglaterra. Uma semana depois, fiz uma pré-entrevista por telefone e passei para a fase de entrevista pessoal e teste escrito. Passei também essa fase e assim, tratei dos documentos necessários para me inscrever no NMC, a ordem dos enfermeiros em Inglaterra. Já passaram mais de seis anos.
Em termos profissionais sente-se mais realizada aí?
Sim, sinto-me realizada. Nos últimos quatro anos e meio tenho trabalhado nos cuidados intensivos, que é a área onde sempre quis trabalhar. Além disso, tive a oportunidade de fazer uma pós-graduação nesta área, totalmente paga pelo hospital. Foi difícil, uma vez que trabalho em full-time, mas valeu a pena.
Todos os anos sou ligeiramente aumentada, ou seja, há uma certa progressão de carreira.
Ana Rita Oliveira
Olhando para trás, gostava de ter sido mais ambiciosa. Talvez ter concorrido a uma posição de manager, ou algo de género. Mas não me sinto insatisfeita com o que alcancei atá agora. Adoro o meu trabalho e sinto que sou reconhecida por isso na minha equipa.
Do que é que sente mais falta em Portugal?
Em relação a esta pergunta, eu vou responder sobre o que é que sinto mais falta DE Portugal.
Sinto falta do mar, uma vez que moro a cerca de 15 minutos da praia em Portugal. Sinto falta de comer peixe, das mais variadas formas, uma vez que aqui não se encontra muito bom peixe. Falta também da comida em geral. Os meus pais têm galinhas e um quintal com legumes e frutas frescas que são, indiscutivelmente melhores do que os que se encontram nos supermercados.
Ah, o vinho e a cerveja portuguesa também fazem falta. Não se encontram tão bons aqui!
Ana Rita Oliveira
Sinto falta da banda filarmónica. Sou música amadora na Banda Filarmónica da Sociedade Boa União Alhadense. Toco flauta transversal, há cerca de 20 anos e muitos dos meus amigos mais antigos são deste convívio.
Acima de tudo, sinto muita falta da minha família, principalmente dos meus sobrinhos e do meu namorado.
Viveu o Brexit, agora a pandemia. Isso fá-la pensar em regressar a Portugal?
Apesar de gostar de estar em Inglaterra e de estar satisfeita em termos profissionais, nunca encarei a minha estadia aqui como algo permanente.
Sou muito ligada afetivamente à minha família e ao meu namorado. Por isso, já há algum tempo que tenciono regressar a Portugal. A pandemia não altera em nada a minha vontade de regressar.
Aliás, concorri a uma proposta de emprego em outubro de 2019. Neste momento, estou em processo de regressar a Portugal o mais breve possível. O meu namorado tentou por cerca de 2 anos arranjar emprego em Inglaterra, na área de arquitetura. Não conseguiu, porque não tinha experiência aqui. Por isso, tomei a decisão de ser eu a regressar.
Nunca vi Inglaterra como a minha casa, mas sim como uma “casa emprestada e temporária”.
Ana Rita Oliveira
É certo que os salários em Inglaterra são melhores, a qualidade de vida é melhor e a satisfação profissional é maior. Mas, no final do dia, quando não se tem ninguém com quem partilhar isso, tudo parece meio vazio.
Do que é que tem mais receio no pós Covid-19?
Tenho receio da crise financeira e económica que se irá viver, não só em Portugal, mas a nível mundial. Vão ser períodos de grande incerteza e de instabilidade para todas as pessoas. Mas creio que é importante manter a cabeça erguida, pensar de forma positiva e acima de tudo, ser tolerante e solidário com o próximo.
Acredito que esta pandemia vai deixar grandes marcas em todo o lado. Ou porque se perderam amigos e familiares queridos, ou porque se perderam empregos e negócios. Ou porque se sofreu emocionalmente ao se estar na linha da frente do combate a esta pandemia.
Ana Rita Oliveira
Todos nós vamos sofrer, de uma forma ou de outra com isto. Mas como se costuma dizer, depois da tempestade vem a bonança, portanto, coisas boas virão com isto. Quero acreditar que vamos ser mais tolerantes e respeitadores do próximo e do nosso planeta. E acima de tudo, que vamos ser mais apreciadores das pequenas coisas da vida.
A minha mala leva…
Ultimamente, não tenho trazido nada de novo. Antes costumava trazer algum café, Nestum, louro, orégãos frescos e claro, bacalhau. Acima de tudo, leva o carinho dos meus familiares e dos meus amigos e o coração cheio.